Sobre “A descoberta das Américas”

No sábado, dia 28 de abril, parte dos artistas da Companhia foi assistir à peça A descoberta das Américas, do original de Dario Fo (Johan Padan A La Descoverta de Le Americhe).

Primeiro é importante mencionar que só o casal Paula Fidelis e Renan Vinicius aguardava há oito anos (isso mesmo!) pela oportunidade de assistir a esta montagem. Creio que a espera tenha sido gratificada pelo espetáculo que pudemos assistir. Sobre ele, tanto me ocorre para dizer que é melhor topificar (existe, ou é neologismo?).

Sobre Dario Fo. Ando em estado de amor pelo ator, escritor, dramaturgo, cenógrafo, arquiteto assistente, bambambam e Prêmio Nobel de Literatura (1997). Sei que ele me perdoaria por isso, mas ele é atualmente meu principal objeto de consumo.

O texto de A descoberta das Américas é construído como um trabalho de relojoaria (Bárbara Heliodora chamou de ourivesaria, tem que fazer diferente, né?), privilegiando aquilo que Fo domina: a intertextualidade existente no fazer teatral entre palavra e gesto resultando na corporificação do que é dito. Esse saber profundo vem da relação de Dario com a oralidade, com a contação de histórias, com a commedia dell’arte! Sobre o gesto, cito Dario Fo: “Existem centenas de gestos convencionais que são utilizados na linguagem cotidiana para proporcionar uma comunicação rápida. (…) Em teatro, o gesto precisa ser reinventado, do mesmo modo como se reinventam as palavras. É necessário aprender a partir da realidade, não das convenções da realidade.” (Excerto de Manual mínimo do ator.)

Vejo sempre em meu trabalho (e agradeço por isso!) artistas plurais, inquietos, interessados em muitas formas de fazer arte, que infelizmente esbarram na própria multiplicidade, como uma aranha tropeçaria em suas oito perninhas… A pluralidade é marca da alma verdadeiramente artística que, comumente, necessita de variados meios de expressão. Dario Fo representa a alma artística que deixa de ser potência e consegue a realização. Ele é brilhante como ator, como palestrante, como dramaturgo. E isso é apenas um pouco do que sei dele, como a pequena parte emersa de um iceberg. Ele é muito mais do que isso, só ainda não consegui acompanhar… E, antes de tudo, é um estudioso. Esse é o cerne. Só com o estudo (e ele mesmo faz questão de frisar em suas palestras) e domínio da técnica, a arte, qualquer que seja, encontrará correta expressão. Fica o recado aos nossos jovens e talentosos artistas!

Julio Adrião (e mais um pouco de Dario Fo). Ator experiente, pronto para o texto que veste. Tudo que se pode querer saber sobre ele está disponível na internet: o prêmio Shell (justamente por este trabalho), o tempo de estudo e trabalho na Europa, o papel do Governador em Tropa de Elite 2 e tals. Mas o que me interessa é pensar na vivência dele em teatro na rua, com a Companhia do Público, que integrou por anos. Só mesmo para artistas do gabarito de Julio Adrião deve ser possível chamar de plateia o povo que passa apressado por ruas caóticas. Como fazê-los ficar? Convenhamos, não deve ser mole, não… A cara de pau indispensável para “abrir a roda” e ganhar a plateia, nossa! Como as cadeiras ocupadas pelo público pagante nos confortam…

E me parece que Julio Adrião desconstrói essa convenção! Para ele, somos os mesmos, os pagantes da bilheteria ou os pagantes do chapéu.  E tive essa impressão pela forma como ele joga o texto fora. Como???? Calma, leitor afoito. Não cometerei heresias com o santo nome de Adrião! Explico: Julio Adrião não só dá vida ao texto de Dario Fo, mas bebe direto em sua arte da commedia, em seu grammelot, e em suas técnicas. Em determinado momento do Manual mínimo do ator, nosso autor abençoado fala sobre a necessidade de chutar a “cara do espectador apático” (e ao ler a transcrição, reparem como Dario Fo parece falar direta e especificamente do dilema atual vivido pelo nosso teatro contemporâneo!):

“Sim, o público é importante, aliás é fundamental para o desenvolvimento e crescimento de uma obra. (…) Entretanto, todo cuidado é pouco para não nos tornarmos bajuladores desse mesmo público. Com frequência, ele revela-se uma bela droga. Encontra-se presente na sala de espetáculo sem brio, passivo e aparvalhado. Eventualmente, mostra-se pouco ou nada propenso ao novo (…). Como podemos individualizar o caráter do público? Pois bem, eu tenho um certo método. (…) Às vezes, somos forçados a lançar-lhe na cara as falas, jogando-as fora – nesse caso não nos interessa que elas sejam absorvidas completamente. Obrigamos o espectador a esticar o pescoço para nos ouvir, se ele quiser entender o que estamos dizendo. Como histriões bastardos, abaixamos conscientemente o tom de voz e depois lhe gritamos na cara, subitamente. O teatro é uma luta de socos e afagos, sem ringue, em que o juiz foi vendado e, para vencer tudo é válido.” (pgs. 194 e 195)

Arte: Yuri Vasconcellos

Eu fui testemunha ocular! Em mais de uma ocasião Adrião literalmente “jogou o texto fora” e nos obrigou a “esticar o pescoço” e correr atrás dele. E nós corremos… E ele, generosamente, estava lá, nos aguardando. Não pretendo em momento algum dizer que Julio mima ou segue algum “manual de interpretação de Dario Fo”, pelo contrário. Quero compartilhar a impressão profunda que vivi, ao assisti-lo em cena, de ser a privilegiada espectadora de um encontro de amor, de um desses casos raros e melodramáticos que nos arrebatam, com direito a música melosa de fundo, de “feitos um para o outro”! É como se toda a experiência teatral de Julio Adrião o conduzisse para a obra de Dario Fo, dadas as semelhanças de formação entre ambos na arte proveniente do que é popular, da oralidade e da tradição.

E, compartilhando o conselho que Fo dá aos “aos atores mais jovens”: “Posso assegurar que a prática é o melhor meio para o aprendizado da leitura de todo o texto teatral. E em teatro, a prática se obtém não só atuando em espetáculos, mas também na posição de espectadores, assistindo principalmente a atores de grande talento e com muita experiência. (…) Aconselho sempre aos atores mais jovens: se querem aprender, fiquem (…) lá, controlem e acompanhem o grande ator profissional, o ‘matador’. Procurem descobrir como ele improvisa nos momentos de maior dificuldade, como sente o público, como ‘arranja’ o texto dependendo da reação das pessoas, como acelera e ralenta o ritmo, como manipula as pausas e os contratempos. Acreditem, essa é a melhor escola de teatro que se pode frequentar.”

E não posso deixar de registrar que Adrião, “matador” e pessoa gentil que é, não se furtou a tirar fotos com a mulambada da CTRC depois de um espetáculo exaustivo! Gente, Julio Adrião é pop!

Para conferir a foto da galera com Julio Adrião, acesse https://www.facebook.com/media/set/?set=a.207197669399756.44814.194108470708676&type=3

Teatro Serrador. Só boas notícias para a cena teatral carioca: um teatro com a tradição do Serrador reaberto depois de quatro anos, em pleno funcionamento, administrado por artistas e com espetáculos de qualidade a preços populares! Parabéns Alfândega 88! Fica a dica: avisar sobre a proibição de estacionamento do lado esquerdo da rua no início do espetáculo, não, né galera?, mas na hora da venda dos ingressos, por favor!

Aos nossos atores, estamos em pleno estudo sobre a commedia dell’arte. Não faltem às Oficinas de Prática Teatral e aproveitem para assistir A descoberta das Américas que tem mais uma apresentação, no Teatro Serrador, dia 31 de maio, às 19h. Eu vou de novo!

Andréa Terra